Entrevista 
VÍTOR CÓIAS
 

A Propriedade: Acha que em Portugal é dada a devida importância à preservação do património?

Vítor Cóias: Infelizmente não, pelo menos no que respeita a uma parte relevante, que é o património cultural construído nas suas diversas vertentes: desde os centros e bairros históricos das grandes cidades até às construções vernáculas, passando pelos monumentos e sítios, pelas casas antigas, nobres e senhoriais, pelas aldeias tradicionais e pela paisagem cultural. As associações de defesa do património cultural não conseguiram a mesma mobilização dos jovens que as de defesa do património natural.

 

MANTER O CARÁTER E A ATMOSFERA DESSES LOCAIS, QUE É O QUE OS TORNA GENUÍNOS

 

A Propriedade: Quanto à reabilitação urbana, acha que se deve recuperar tudo ou se deve escolher criteriosamente o que merece ser reabilitado?

Vítor Cóias: Depende de que parte da cidade de que estamos a falar. Nos centros e bairros históricos deve recuperar-se tudo o que for possível, e manter o caráter e a “atmosfera” desses locais, que é o que os torna genuínos. Para isso, é preciso manter os moradores, facilitando a instalação de moradores mais jovens – não de turistas “low-cost”, de férias ou de fim de semana.  Mas se estamos a falar de bairros degradados, sem valor histórico, a demolição poderá ser uma solução, embora em termos ambientais seja pior que a reabilitação, porque cria grandes volumes de detritos a que é preciso dar destino adequado e obriga a consumir mais materiais e energia.

 

A Propriedade: Na zona central da cidade, aquando da reabilitação de edifícios destinados maioritariamente a hotéis e alojamento local, o que pensa da destruição sistemática da gaiola pombalina?

Vítor Cóias: Penso que isso é péssimo, a menos que se trate de edifícios sem valor cultural e que o estado de degradação e de alteração seja muito avançado.

Aliás, quanto à Baixa Pombalina, até já existem hotéis de mais.

 

A Propriedade: Qual a sua opinião relativamente à entrega do centro das principais cidades aos turistas e o crescimento desmesurado dos subúrbios?

Vítor Cóias: E um erro crasso, que contraria a estratégia declarada de cidades como Lisboa e o Porto que é travar a perda de população. Apesar das correções a que a pandemia obrigou, os censos de 2021 devem confirmar que estas duas cidades voltaram a perder moradores, apesar de nelas se terem instalado muitos estrangeiros.

 

A Propriedade: Na atual conjuntura, e atendendo às últimas intervenções, ainda será possível o sucesso de uma candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial da UNESCO?

Vítor Cóias: Acredito que sim. Aqui, a câmara atrasou deliberadamente o processo de candidatura, porque isso seria um entrave que iria atrapalhar a “Via Verde” e outras facilidades concedidas aos promotores imobiliários. Muitas câmaras, como a de Lisboa, apostaram declaradamente na promoção imobiliária como forma de reabilitar a cidade. No caso de Lisboa e do Porto, o que se fez não foi reabilitação. Foi renovação, com a substituição dos moradores originais por outros mais endinheirados, em grande parte estrangeiros, e por uma população “flutuante” de turistas, a maior parte “low-cost”.

 

A Propriedade: Em consequência da pandemia COVID-19 qual virá a ser o futuro da Baixa Pombalina, em termos de habitação, lojas e escritórios?

Vítor Cóias: A vocação original da Baixa Pombalina é a habitação e o pequeno comércio. É isso que lhe confere “caráter” e “atmosfera”. Com a “febre” imobiliária dos últimos anos, a Baixa foi “turistificada”. A pandemia devia ser aproveitada para incentivar o retorno à função habitacional (agora para estudantes ou jovens casais em princípio de vida) e ao pequeno comércio.  

 

A Propriedade: Sabendo-se que nas principais cidades se fabricava praticamente de tudo, qual a melhor forma de preservar a memória fabril?

Vítor Cóias: Essa é uma parte importante do património cultural dos bairros e centros históricos que vale a pena preservar, e as câmaras fariam bem em incentivar essas pequenas indústrias locais. E claro que, para poder tirar partido das vantagens da escala, muitas das antigas indústrias tiveram de partir para a periferia. Mas unidades antigas podem e devem ser preservadas porque constituem património do domínio da arqueologia industrial. A emergência climática vai obrigar-nos a recuperar muita coisa que nos habituámos a usar e deitar fora. Fazem falta nas cidades os pequenos negócios que permitem recuperar eletrodomésticos, vestuário, calçado, fazer a manutenção das habitações e dos edifícios, etc. Temos de reduzir o consumo e o desperdício e começar a produzir os bens de que necessitamos tão perto quanto possível dos locais de consumo. Em termos ambientais é “criminoso” trazer, de avião, mangas do Brasil ou uvas da África do Sul, para satisfazer os caprichos do consumidor. As cadeias logísticas têm de ser muito mais curtas.  

 

A Propriedade: Como analisa o facto de, praticamente, serem os promotores e mediadores imobiliários a condicionarem os projetos de reabilitação urbana?

Vítor Cóias: O negócio imobiliário não é mau em si, como acontece com muitas outras atividades. A capacidade financeira e o dinamismo dos promotores podem ser aproveitados para renovar a cidade, mas têm de se submeter ao imperativo do bem comum. Isso passa em primeiro lugar, pelo bem-estar dos moradores, mas também pela salvaguarda do caráter e autenticidade dos bairros e centros históricos e pela preservação dos edifícios com valor histórico-artístico. Não podem ser os promotores imobiliários a comandar o processo.

 

AS SITUAÇÕES ABERRANTES  DE “INQUILINO RICO E SENHORIO POBRE”

 

A Propriedade: Considerando que os senhorios tradicionais estão descapitalizados por muitas décadas de rendas congeladas, qual a melhor forma de acudir aos pequenos proprietários e aos seus imóveis?

Vítor Cóias: Muitos senhorios tradicionais terão visto os seus problemas simplificados pela legislação saída do governo de Passos Coelho por imposição da “troika”. Por outro lado, muitos dos imóveis, pelo menos nas zonas mais apetecíveis das cidades, foram transacionados aproveitando o surto do negócio imobiliário que acelerou em 2015, e as novas facilidades concedidas pelas câmaras no licenciamento. Com as novas facilidades de despejo e os preços por m2 empolados, o problema não se coloca hoje como nos anos noventa. Mas não há dúvida que o congelamento das rendas foi um erro. Não só impediu a renovação do parque habitacional, como contribuiu para situações aberrantes de “inquilino rico e senhorio pobre”.  

 

A Propriedade: Qual a sua opinião acerca da prometida reabilitação de grandes imóveis do Estado, como quartéis, escolas e hospitais, transformando-os em residências de estudantes e casas para arrendamento acessível?

Vítor Cóias: Parece-me uma forma lógica de reagir ao grande aumento das rendas que se estava a verificar nos “anos loucos” antes da pandemia, e tentar evitar o afastamento de mais famílias para os dormitórios suburbanos, com a inerente perda de qualidade de vida.

Por outro lado, é muito bom em termos ambientais e mesmo em termos económicos, que se aproveitem os edifícios existentes em vez de construir novos. É isto que eu ando a defender desde os anos oitenta!

 

 

 

                                                                  FIM

    

 

  
 
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