¹ARRENDAMENTO E FAMÍLIAS

DE FRACOS RECURSOS


Artur Soares Alves

Diretor da ANP

 

Há algum tempo, falando a uma autoridade política sobre a viabilidade do arrendamento como modo de fornecer habitação a toda a gente, mesmo no âmbito da habitação social, deparei-me com uma instintiva discordância. Neste artigo, enquadra-se o assunto e desenvolvem-se argumentos para justificar o mérito da tese então defendida.

O artigo 65.º da Constituição de 1976 introduz o direito à habitação[1], e até contém cláusulas indicativas do modo como se cumprirá este direito[2]. Sabemos que a Constituição foi redigida e aprovada num ambiente de grande nervosismo, por uma geração política que havia perdido o comboio do poder, por mais de uma vez. A ausência de experiência governativa e a época ainda moldada pelas maravilhas do pós-guerra, imprimiram nessa geração a crença na magia das palavras. Isto é, se afirmarmos alguma coisa com convicção bastante, aquela torna-se realidade. Foi assim que se inscreveram os chamados direitos novos, por oposição aos velhos direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Melhor seria chamar privilégios a estes direitos novos, o que está de acordo com o dicionário[3]. Para tomar um exemplo, seja um cidadão que só é capaz de produzir bens no valor de 500 euros, por mês. O princípio de um salário mínimo de 600 euros impõe que receberá seiscentos, ou não terá o direito de trabalhar. Neste caso, o Estado tem que atribuir-lhe um subsídio pago, naturalmente, pelos que trabalham e pagam os impostos. Não cuida a lei de saber se o quidam é efetivamente incapaz — por doença incurável, defeito físico, problema mental — ou se é prosaicamente um calaceiro.

 

O DIREITO À HABITAÇÃO

Deve, ou não, o Estado proporcionar habitação a quem não a pode pagar? Para além do que está na Constituição, pelo que viu acima o assunto levanta um sem número de problemas e ainda não chegámos a alguns dos mais interessantes. Em todo o caso, o conceito de nação obriga moralmente a que nenhum Português seja deixado sem a oportunidade de teto que o abrigue. Não porque isso resulte dos progressos sociais do nosso século, visto que já aos senhores feudais estava prescrito o dever de cuidar dos servos nos momentos difíceis da vida. Porém, como há de o Estado dar cumprimento a esse dever moral e político? A solução adotada até hoje é um Estado promotor e senhorio (sendo por vezes a renda paga igual a zero).

 

O QUE É UM SENHORIO?

Em Portugal, os problemas da habitação complicam-se porque raras são as pessoas com poder de decisão aptas a compreender a função do locador (ou senhorio) na economia. O locador é um investidor; se comprou o local fê-lo com as suas economias ou com crédito; se o herdou, podia ter vendido os prédios e comprado um Tesla, mas preferiu colocá-los ao serviço de outros. Até aqui quase toda a gente compreende. Porém, para além de investidor, o locador é um administrador do seu património; vista a rendibilidade do arrendamento, somente um muito grande proprietário pode entregar a gestão direta a terceiros, como quem deposita o dinheiro no banco. Como administrador o locador tem que ser cuidadoso com as pessoas a quem arrenda. Se não quiser destruir a sua propriedade, tem que guiar-se pelo tríptico: (1) que paguem pontualmente; (2) que tratem bem da casa; (3) que façam boa vizinhança.

Portanto, não interessa ao proprietário somente o rendimento, ele tem que cuidar do bem-estar dos inquilinos. Todo o contrato é uma carta fechada, só meses depois de instalados os novos inquilinos pode o proprietário avaliar a situação. Quantas vezes uma casa acabada de renovar é devolvida, um ano depois, em estado miserável, paredes sujas, mau cheiro infiltrado no pavimento flutuante, portas riscadas, e mais não se diz para não dar ideias… Por outro lado, mostra a dolorosa experiência que uma família disfuncional despeja um prédio com cantorias pela madrugada, portas a bater, quando não ameaças aos vizinhos.

É com estas situações que o proprietário tem que lidar, sem auxílio por parte do Estado que sempre favorece o incumpridor.

 

O ESTADO SENHORIO

Os problemas enumerados não desaparecem quando o Estado é senhorio. A função de administrador terá que caber a alguém, naturalmente, a um serviço com um quadro de funcionários, carreiras definidas, conteúdos funcionais, regulamento de funcionamento e horários de expediente. Os custos são muito maiores do que no privado, entre outros fatores, porque o pessoal não tem o chamado skin in the game, isto é, não tem interesse direto, nem benefício, em conseguir bons resultados a custo moderado. Mesmo que queira acertar, por um imperativo de consciência ou por brio pessoal, o funcionário depara-se sempre com a rigidez dos regulamentos e com as idiossincrasias dos dirigentes. Por tudo isso, o que custa um no privado custa quatro no Estado.

É uma simples questão de deitar contas à vida. Entre o investimento inicial, os custos do projeto e da construção, os custos e a eficiência da gestão dos locais; comparando lealmente com os custos de potenciais  rendas subsidiadas, logo se chegará à conclusão sobre o que é mais barato e o que é mais caro. Por alguma razão, os países que têm vastos conjuntos habitacionais para gerir procuram ver-se livres deles, vendendo a baixo custo aos inquilinos ou forçando os municípios a tomar conta da gestão.

 

ARRENDAMENTO SOCIAL PRIVADO

A tese aqui defendida consiste em afirmar que seria mais prático e mais barato o Estado subsidiar rendas do que lançar-se numa missão de promotor e senhorio. Os capitais privados seriam atraídos para esta oportunidade de investimento e a habitação social deixa de estar associada à noção de gueto. O inquilino subsidiado pode escolher o seu local de habitação, desde que seja aceite pelo proprietário e nas exatas condições dos inquilinos mais afortunados ou mais trabalhadores. O locador lá está para gerir o arrendamento e garantir a boa vizinhança.

Todavia, nesta tese há um buraco que leitores mais afeiçoados à baderna não deixarão de assinalar. Em 2008, a propósito de um incidente de que resultou a morte de um jovem de 23 anos, noticiou o Público que “A Câmara Municipal de Gaia anunciou a abertura de um inquérito à morte do jovem atingido por disparos, alegadamente acidentais, a noite passada, no bairro de Perosinho, adiantando que despejará os moradores que tenham armas ilegais em casa ou que tenham celebrado a passagem de ano com tiros.”

Não sabemos donde vem o régio poder da Câmara de Gaia que lhe permite cilindrar a Constituição. Porém, é certo que há e haverá sempre famílias que desprezam o sossego dos vizinhos, e aquelas também precisam de um teto. Não vale a pena sofismar, nenhum proprietário com juízo quer tais inquilinos, portanto, estes casos extremos têm que ser resolvidos pelo Estado. No entanto, assinale-se que um processo que castiga o mal e recompensa o bem, há de estimular a boa atitude social.

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¹”1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”

² “2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;

b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;” Etc.

³Privilégio: (do latim privilegiu-). Direito ou vantagem especial que se concede a uma ou mais pessoas para esta ou estas gozarem com exclusão de outros (…)” in Dicionário de José Pedro Machado.

 

 

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