Coisas Práticas. Doutrina

 

Artur Soares Alves

24-Nov-2011

 

 

 

Os proprietários urbanos não formam nenhuma classe, raça, ou clã. São indivíduos como outros quaisquer, tirando uma certa propensão para a poupança que converteram em prédios. Como indivíduos pertencem a todos os extractos sociais, não tendo quaisquer ligações entre si, qualquer ideologia ou preferência política comuns. Por ingenuidade muitos deles simpatizam com ideias que, se postas em prática, os despojariam de toda a sua propriedade. O que identifica os proprietários como grupo são as acções hostis do Estado e o ataque constante por parte dos privilegiados amesendados ao Estado ou em situações equivalentes, que se acolhem ao título de  intelectuais[1].

 

São estas circunstâncias que levam directamente à necessidade da formação de associações que visam a defesa dos direitos dos proprietários enquanto aforradores. E só  é necessária  defesa porque há ataque. Este ataque consiste na espoliação da propriedade por parte do Estado por vários métodos — a expropriação a troco de uma esmola, os impostos, o congelamento das rendas, a regulamentação nos planos directores do território. Individualmente ou em conjunto os proprietários reclamam para concluir de imediato que a justiça é uma noção sem valor perante os interesses organizados das oligarquias. O congelamento das rendas tem 101 anos de existência e nada sugere que não dure mais um século, a não ser pela queda dos prédios.

 

Portanto os proprietários urbanos necessitam de um movimento, que não seja um lobby destinado a conseguir vantagens, mas de um movimento que se oponha aos contínuos ataques à propriedade. Esses ataques agravam-se quando a economia está a empobrecer. Compreende-se. A propriedade representa poupança, isto é, riqueza que está disponível e que é fácil de apropriar.

 

Um movimento que defenda os proprietários tem uma grande distância para percorrer. Se estivésssemos em 1920 ou 1930 o problema ainda se poderia reduzir à modificação de leis recentes, nomeadamente o decreto 5411 de 1919, esse grande “monumento legislativo” da República. Porém, hoje em dia a ideologia impôs-se de tal modo contra racionalidade que é mais aceitável dizer, por exemplo, “o governo deve oferecer tv por cabo a todos os portugueses” do que afirmar que “o doutor Fulano que cobra o montante da renda numa só consulta deve ter a renda descongelada”. A luta dos proprietários tem que ir à mudança das ideias, tanto quanto à mudança da legislação. De facto, uma legislação que vá contra o sentimento dos cidadãos, por tolo que este seja, está sempre sujeita a revogação sem tirte nem guarte.

 

Um movimento que pretende mudar leis e costumes sociais tem que tratar ordenadamente das seguintes questões:

 

  • a questão doutrinária,
  • a estratégia,
  • a táctica,
  • os métodos de acção.

Sem resolver coerentemente estas questões as pessoas perdem-se no emaranhado de truques a que se recorre na política para confundir os espíritos. Nestes artigos falaremos sinteticamente dessas questões, começando com a questão doutrinária, a primeira matéria que é necessário estabelecer.

 

A doutrina

 

Tudo começa pela identificação da essência do congelamento das rendas. O congelamento das rendas, que só produz efeitos significativos em conjunto com a inflação, é um atentado ao direito de propriedade. É certo que é o nome do senhorio, e não o do inquilino, que figura na caderneta matricial e no registo predial. E é certo que o inquilino continua a pagar a renda. Mas o dinheiro só vale por aquilo que pode comprar e se traduzirmos o dinheiro em mercadorias, o poder de compra da renda actual é uma fracção ridícula do poder de compra da renda inicial. Portanto, nominalmente o prédio tem um proprietário, mas quem o usa é outra pessoa. O proprietário não tem o direito de reaver o seu prédio e o uso continua a ser direito do inquilino enquanto a este aprouver.

 

O proprietário foi esbulhado da propriedade que adquiriu legitimamente — por compra, herança ou outro meio — em favor de um cidadão que nela não investiu um cêntimo. É interessante como esta questão não oferecia dúvida alguma nos anos de 1920, como o atesta um opúsculo escrito na época[2]. Não se duvidava de que o congelamento era uma atentado ao direito de propriedade, foi mais tarde que o problema passou a ser tratado como uma questão que “estava errada” mas cuja raiz nunca era posta a descoberto.

 

As questões do direito de propriedade e da sua negação não são do século XX. A negação do direito de propriedade é até muito natural, basta ver as feras maiores a tentar tirar às outras o bocado de carne que estas apanharam da presa abatida. O forte sempre negou ao fraco o usufruto dos bens que este produziu. O desrespeito pelo direito de propriedade é tão natural como os mais bestiais instintos do Homem ou do animal.

 

O que acontece é que sem direito de propriedade ainda viveríamos em cavernas comendo raízes ou caçando pequenos animais. Sem direito de propriedade nunca a agricultura e a pecuária se teriam desenvolvido. Em qualquer época em que o lavrador não veja reconhecido o direito ao usufruto do que semeou, logo a agricultura pára e a fome aparece. É por isso que, fora situações lunáticas como os regimes comunistas, a propriedade nunca foi formalmente abolida nas leis fundamentais. O que ocorreu e continua a ocorrer são artifícios para despojar o indivíduo do uso da sua propriedade, quando tal convém aos governos.

 

A questão é muito antiga e já se encontra tratada pelos filósofos gregos e os juristas romanos. Os teólogos medievais, sobretudo os escolásticos, trataram do assunto com todo o rigor, colocando-o no contexto do direito natural, isto é, o direito inerente ao indivíduo como ser humano. Segundo os escolásticos o indivíduo precede o Estado e o direito natural precede as leis. As leis que ofendem o direito natural são ilegítimas, seja qual for a sua fonte.

 

Free riders

 

Nesta fase do texto é importante chamar a atenção desta questão porque ela tem a ver com uma objeção levantada por pessoas com uma limitada visão do problema. Vezes de mais pergunta-se por que não hão-de pertencer os bens a toda a comunidade? Por que não há-de o indivíduo que recebeu o dom de ser mais produtivo trabalhar para o “bem comum”, em vez de aumentar o seu património? Desta questão nascem considerações supostamente morais atribuindo um comportamento egoísta ao produtor e desumanizando-o. Ao desumanizar o proprietário torna-se depois mais fácil espoliá-lo.

 

Os comportamentos generosos são viáveis em pequenas comunidades, como a família, as ordens religiosas ou certas corporações em que a recompensa moral sobreleva a recompensa material. Em caso de catástrofe os comportamentos generosos aparecem espontaneamente, as pessoas arriscam a vida pelos outros sem pensar em qualquer recompensa, porém na rotina do dia-a-dia tal não é possível.

 

E tal não é possível porque para cada comportamento altruísta existe do outro lado um free rider[3] à espera de colher os frutos que outros semearam. Mesmo na situação de catástrofe, se muitos se comportam generosamente e até heroicamente sem contabilizar a recompensa, outros aproveitam-se da quebra da ordem social para se dedicar à pilhagem. E no fim não faltarão as forças vivas para posar na fotografia ou falar na TV, apoderando-se do altruísmo do cidadão anónimo.

 

Se os produtores não podem guardar o fruto do seu trabalho, se tanto vale trabalhar como dormir à sombra do castanheiro, o número de free riders vai crescendo e o número de produtores vai diminuindo, até ao resultado final — a miséria. Por isso, como se demonstra historicamente, a propriedade privada é uma necessidade social, é um bem de interesse colectivo.

 

Porque há uma verdade inabalável no que foi dito é que as ações contra o direito de propriedade se manifestam à falsa-fé. À imagem do assaltante de estrada, o free rider aparece em períodos de criação de riqueza, que são os períodos de liberdade económica, para exigir para si aquilo que outros produziram.

 

A questão da poupança

 

É pela poupança que se forma o capital e é pela existência de capital que se tornam possíveis novos empreendimentos[4]. Contudo, no seu aforro o cidadão não é motivado por esta visão económica da sociedade. Ele apenas espera que a poupança lhe seja útil nos dias maus que o futuro pode trazer. Esta ideia de que o futuro existe e não é igual ao presente, e até pode ser-nos adverso, é uma prova de maturidade intelectual. O recíproco é o comportamento do adolescente que vive unicamente no presente, consumindo tudo o que lhe passa pela mão.  Mesmo quando esse adolescente tem trinta, quarenta ou cinquenta anos.

 

A questão central é que a poupança não é possível sem direito de propriedade. Ninguém trabalha e sacrifica o seu consumo presente se não tiver uma razoável garantia de que pode aproveitar o fruto do seu sacrifício.

 

Os políticos de hoje convenceram os cidadãos de que não é preciso poupar. Para a velhice há a Segurança Social que dá ao pensionista mais do que as contribuições[5] que ele pagou durante a sua vida activa. A saúde gratuita aí está para responder à doença. A educação do filhos também é gratuita. Afinal, tudo o que resta ao cidadão depois de pagar os impostos é para consumir e os Portugueses têm cumprido rigorosamente com essa “obrigação”, endividando-se se necessário. A economia portuguesa baseia-se no consumo; em vez de fábricas, constroem-se shoppings; em vez de uma mão-de-obra tecnicamente competente, a juventude é educada na ideia da gratificação imediata.

 

Todavia, isto é sustentável num universo paralelo mas não no mundo real. Muito depressa as garantias (ou direitos) que faziam do consumo uma virtude estão a revelar-se ilusões. A economia baseada no imobiliário e no consumo (de produtos importados) está à beira do esgotamento. Foi até aqui que nos trouxe o ataque à poupança, o achincalhar das virtudes económicas da prudência e da moderação, que fazem a riqueza das nações. Que são precisamente as virtudes que caracterizam aqueles que investiram no arrendamento como forma de corporizar as suas poupanças.

 

Exceções

 

Mesmo os direitos naturais admitem exceções que contrariam possíveis abusos. A liberdade de movimento pode ser contrariada por uma sentença de prisão que puna um crime. Se esta exceção não fosse admissível seria impossível deter o crime, isto é, seria impossível impedir os atentados contra os direitos de outrém. O direito à auto-defesa (parte do direito à vida) também colide com o direito à vida do atacante. Etc.

 

O direito de propriedade (ou liberdade de possuir propriedade) também admite exceções. Estas são, tipicamente, os impostos e a expropriação dos bens imóveis[6]. O imposto sobre a propriedade já foi há muito tempo reconhecido como dupla tributação, uma vez que a propriedade foi adquirida com poupanças retiradas do remanescente do rendimento, após impostos. A expropriação para utilidade pública pressupõe uma indemnização e só deveria ser feita em situação de monopólio, isto é, quando um projecto de utilidade pública só pode ser executado com a expropriação do bem em causa.

 

Sabemos como a expropriação, directa ou escondida por detrás de objectivos “sociais” é liberalmente praticada e não nos detemos mais sobre o assunto.

 

Resta uma nota sobre os impostos, em geral. Os impostos, seja qual for a base de incidência, distorcem a economia. Não podendo suprimi-los o único princípio que se pode enunciar é que eles sejam moderados, ao ponto de o Estado funcionar nas suas funções essenciais, mas sem desperdícios. 

 

Conclusão

 

Chamaram ao século XX o “século do povo”, quando mais propriamente teria sido chamado o século do roubo. O que se viu ao longo deste século foi um ataque permanente ao direito de propriedade, ou à liberdade económica que é uma designação equivalente. Todos os governos do mundo praticaram esse ataque, embora a medalha de ouro caiba à Argentina que passou de um dos países mais ricos do mundo (em 1900) para o que é hoje. Não foi decerto por acaso que o século XX viu duas guerras que levaram a civilização à beira do abismo, isto sem contar com 45 anos de guerra fria.

 

O século XX viu crescer a produtividade da economia para valores inimagináveis e mesmo assim os governos conseguiram levar-nos à crise que todos os dias se agrava.

 

Se não se arrepiar caminho o futuro pode ser ainda mais trágico. Trágico mesmo para os free riders que beneficiam da actual situação política. Eles próprios poderão ver-se na situação dos lobos que tendo exterminado todos os rebanhos se vêm a morrer de fome.

  



[1] A palavra intelectual é dúbia. Do que pretende falar aqui é do intelectual público, isto é, do produtor de ideias que são transmitidas ao grande público e que influenciam as políticas governamentais. De fora ficam, e muito bem, os eruditos que conhecem Heródoto no original ou os físicos que procuram decifrar os mistérios do átomo, etc. Isto é, ficam de fora quando não cedem à tentação de serem também intelectuais públicos.

[2] VerO Inquilinato Segundo a Legislação Portuguesa, por A. de F., Lisboa, 1920.  Republicado em Propriedade, Arrendamento & a Roda Livre, por Artur Soares Alves, edição da CNAPI, Lisboa, 1997.

[3] Percebe-se o que é o free rider. Mais difícil é encontrar uma tradução ou uma palavra correspondente em Portugês. Antigamente falava-se em “tachista” ou “videirinho” mas estas palavras não parecem traduzir correctamente o conceito original.

[5] É uma boa oportunidade para desfazer um equívoco. Os descontos para a Segurança Social não são uma poupança forçada que mais tarde será devolvida ao contribuinte. Eles são um imposto que se destina a pagar aos actuais pensionistas, com uma vaga promessa de mais tarde se ter uma pensão proporcional aos descontos feitos. É o chamado pacto de 3 gerações. Este imposto é impressionante. Suponhamos que o ordenado nominal do trabalhador é 100 euros; e que ele desconta 11% para a SS e a empresa paga 22% sobre o ordenado nominal. Isto é, o ordenado real é 122 euros porque este é o preço livre do trabalho. Mas o trabalhador só recebe 89 euros, indo 33 euros para o Estado. A taxa deste imposto é 27%. 

[6] Os bens móveis também estão sujeitos a restrições à propriedade. É o caso das obras de arte que, num ataque de nacionalismo serôdio, não podem ser vendidas para fora do país. Isto como exemplo porque o autor não conhece a legislação portuguesa.

 

  
 
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