“Direito” à Habitação

 

Artur Soares Alves

6-Out-2011

 

 

A expressão “direito à habitação” é hoje frequentemente usada e até está escrita na Constituição. Porém, o que raramente se esclarece é o sentido exacto em que a expressão se usa, ficando implícito na argumentação de quem está a falar. Um dos usos que se detecta é no sentido de um direito de propriedade mais forte do que o usual. No sentido em que roubar um prédio a alguém é um crime por atentar contra o direito de propriedade, mas expulsar uma família da casa que legitimamente possui é um crime torpe que atenta contra um direito de propriedade reforçado.

 

Esta diferença puramente moral manifesta-se relativamente a outros actos criminosos ou simplesmente veniais. Esta diferença põe limites nos comportamentos individuais porque felizmente está inscrita na consciência de certos povos. Os confusos autores da lei Portas (de 1975) legalizaram a ocupação de casas vazias mas excluíram as residências de férias, cremos porque consideraram que estas eram moradas de família e que portanto não seria decente retirá-las aos seus donos. O resultado foi que o modesto proprietário que tinha uma casa vazia ficou sem ela e o ricaço conservou a moradia no Algarve. Isto de fazer diferenças instintivas quando se violam princípios básicos resulta em absurdos…

 

Todavia, o significado mais comum de direito à habitação é aquele que faz parte da Constituição da República[i] que nos explica no seu artigo 65º:

 

1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;

b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;

(…)

3. O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.

 

E na prática o único significado que isto tem é que certos cidadãos que não conseguem habitação, seja por qual razão for, incluindo a aversão ao trabalho, têm o direito de obrigar outros cidadãos a oferecerem-lhes casa. Isto é que é o “direito à habitação”.

 

Está bem? Está mal? Em todo o caso vejamos o que pensa o economista Walter Block[ii] e depois vejamos uma previsível consequência deste direito, baseada em um facto real.

 

A habitação não constitui um direito humano básico

 

Qualquer direito implica as correspondentes obrigações.

 

Se eu tenho um direito sobre uma propriedade, tu tens obrigação de te absteres de a roubares ou de a atravessares. Se tu tens um inviolável direito sobre a tua pessoa, eu ou qualquer outra pessoa, temos obrigação de te não fazer mal.

 

Note-se que se trata de direitos negativos[iii].

 

Fazem com que se torne obrigatório para as outras pessoas coibir-se, suspender ou desistir e até evitar comportamentos agressivos.

 

Não implicam, todavia, obrigações positivas — quaisquer que estas possam ser.

 

Direitos como estes — direitos sobre a própria pessoa e sobre a sua propriedade — têm sido reconhecidos desde tempos imemoriais. Eles constituem a essência da Magna Carta, das constituições e dos princípios seguidos nas democracias ocidentais; eles constituem, de facto, e espinha dorsal da civilização ocidental.

 

Tempos mais tarde, todavia, um novo tipo de “direitos” surgiu.

 

Largamente alardeados, eles incluem uma reivindicação sobre tudo, desde um nível “decente” de vestuário, de alimentação, de habitação e de assistência médica, até à música rock, à satisfação sexual e ao relacionamento interesseiro.

 

Se tal se tratasse simplesmente de uma acentuação do direito de cada um na procura da sua felicidade, qualquer que fosse a maneira escolhida para a conseguir desde que, com isso, não infringisse os direitos de outrem, nada disso mereceria objecções. De facto tal não é mais do que a essência dos direitos de cada um sobre si próprio e sobre o que é seu.

 

Mas algo de diferente pretende significar quem — por exemplo — sustenta que “a habitação é um direito humano básico”.

 

O que aqui se reivindica não é o direito que a cada um seja reconhecido de por si só e livremente, construir, comprar, ou tomar de arrendamento o tipo de alojamento que esteja ao seu alcance.

 

O direito que agora é pedido, relativamente à habitação de cada um, implica uma obrigação, por parte das outras pessoas a facultar-lha. Por outras palavras, esta reivindicação corresponde a um direito positivo, diferente dos direitos negativos de origem clássica.

 

Todavia, o que neste domínio está realmente em causa não tem nada a ver com direitos em si. É, pelo contrário, uma disfarçada e portanto mais insidiosa exigência de riqueza.

No caso dos direitos que são justos tudo o que se solicita de outrem é a sua não interferência; mas nesta modalidade fraudulenta o que transparece é uma reivindicação não avalizada relativamente a uma miríade de bens e serviços.

 

Os novos direitos positivos  

 

Para que se possa evidenciar em que medida os novos direitos “positivos” correspondem a uma radical distorção, consideremos a seguinte hipótese: a espécie humana poderia mergulhar, se se mentalizasse nesse sentido, até ao ponto de fazer desaparecer completamente todas as violações dos direitos negativos. Para tal a única coisa que seria necessária por parte de cada um de nós seria tomar a firme decisão de não tomar a iniciativa de perpetrar qualquer espécie de violência física ou fraude e de actuar em conformidade.

 

Mas nem qualquer acordo mundial a tal respeito seria suficiente para proporcionar o nível de riqueza necessário à satisfação dos chamados “direitos” positivos à saúde à felicidade, e por aí adiante.

 

Existem todavia outros graves problemas nesse sentido. Em primeiro lugar e se se considerar que a habitação é um direito básico, imperativos éticos perante estrangeiros implicam que cada um de nós se sinta em posição imoral não somente quando qualquer um dos seus concidadãos esteja fora dessas condições de habitação “decente”, mas uma vez que qualquer pessoa do mundo possa sentir tal necessidade. Isto porque direitos não reconhecem fronteiras.

 

Se é moralmente obrigatório para qualquer um de nós o fornecimento de um bem ou a prestação de um serviço — sem que tal corresponda a uma obrigação contratual — então tal obrigação deve entender-se estendida a toda a gente que deles necessite.

 

Uma outra implicação lógica é ainda mais insidiosa. É que os direitos são, por natureza, igualitários. É evidente que todos nós, ricos ou pobres, velhos ou novos, temos tido sempre iguais direitos negativos, por exemplo o assassínio cometido contra qualquer pessoa inocente é condenável em igualgrau. O assassino de massas é réu da mesma imoralidade relativamente a cada um dos actos dessa natureza que possa ter cometido.

 

Igualitarismo coercivo

 

Se as reivindicações positivas também forem consideradas direitos, as pessoas terão então direito, não só a um alojamento “decente”, mas também a uma parcela absolutamente igual no património habitacional do mundo.

 

Uma vez que não haverá limites sectoriais lógicos para esses direitos positivos (se relativamente à habitação, porque não relativamente a assistência médica? se relativamente à assistência médica, porque não relativamente ao vestuário? se relativamente ao vestuário, porque não relativamente a diversões?), a reivindicação quanto a necessidade humanas como direitos acaba realmente por chegar à exigência de uma absoluta igualdade de rendimentos.

 

E a situação torna-se ainda pior. De facto não há objecção na lógica desta argumentação que impeça uma igualização da inteligência, da beleza, da capacidade atlética, da robustez sexual, e até da igual felicidade, se todos esses objectivos pudessem de alguma forma ser atingidos.

 

Não!

 

Nós temos de rejeitar essas reivindicações e com elas o pântano moral a que elas nos conduzem. Devemos sobretudo pôr em causa a pertinência dessas reivindicações.

 

É que, mesmo que elas fossem razoáveis tal não justificaria o controle de rendas — que corresponde a idêntica concessão de um subsídio para habitação em favor de inquilinos, tanto ricos como pobres, não a custas de toda a sociedade, mas tão somente às de um pequeno grupo de cidadãos — os proprietários.

  

Caçadeiras de canos serrados

 

Em 2008, a propósito de um incidente de que resultou a morte de um jovem de 23 anos, noticia o Público[iv]:

 

«A Câmara Municipal de Gaia anunciou a abertura de um inquérito à morte do jovem atingido por disparos, alegadamente acidentais, a noite passada, no bairro de Perosinho, adiantando que despejará os moradores que tenham armas ilegais em casa ou que tenham celebrado a passagem de ano com tiros.

“Não aceitamos que alguém tenha armas em casas sociais camarárias e revele comportamentos anti-sociais”, afirmou Marco António Costa, vice-presidente da autarquia.» [aqui]

 

Compreende-se perfeitamente este zelo da autarquia. Imagina-se o que seja viver parede paredes-meias com um quidam que tem em casa uma pistola de 9 mm, uma caçadeira de canos serrados, uma pistola automática Uzzi i, uma naifa de 20 cm; e que além disso se mostre disponível para usá-las ao mínimo conflito sobre o som da televisão ou sobre o patamar sujo.

 

Ninguém deve ser obrigado a viver sob o terror constante de um vizinho agressivo e vizinhos desta natureza devem ser afastados. A Câmara de Gaia iria pôr na rua elementos extremamente anti-sociais que habitam os seus bairros. Porém, como se conciliaria esta intenção com o artigo 65º da Constituição? Este não fala na obrigação de ter um comportamento decente e urbano em relação aos vizinhos, apenas estabelece direitos.

 

Aqui é oportuna esta observação: enquanto que o cidadão pacífico apenas pede que o deixem em paz, isto é, que se abstenham de o ameaçar ou lhe perturbar o sono com batuques às quatro da manhã; ao baderneiro oferece-se uma casa e nem sequer tem que contribuir para a riqueza colectiva que lhe paga essa casa.

 

É por essas e por outras que até há quem diga que isto dedireito à habitaçãoé uma invenção para fins puramente políticos paga com o dinheiro dos mesmos de sempre. Em todo o caso seria interessante ver como se iriam entrechocar os dois direitos que estão em causa.

 

É certo que há uma outra solução: o baderneiro passa a ter direito a uma moradia enquadrada por meio hectare de terreno. Assim, já não incomoda ninguém com o seu comportamento irascível e até pode ter uma carreira de tiro privada. Na essência das coisas não é isto o progresso, poder cada um realizar os seus sonhos sem os constrangimentos de uma sociedade opressiva?

 

FIM

  



[ii] Walter Block, Senior Economist of The Frazer Institute. Extraído de Rent Control -Myths & Realities. Chapter 15: a Reply to the Critics.Vancouver, 1981, páginas 300-302. Ver também: http://en.wikipedia.org/wiki/Walter_Block

[iii] Esta distinção vem do facto de se chamar “direitos” a fenómenos de natureza completamente diferente. As palavras “positivo” e “negativo” não são as mais adequadas a esta distinção e chamando “positivos” aos direitos que o indivíduo tem sobre os outros até faz parecer que estes são os “bons” e os outros são os “maus”. Por isso hoje a literatura fala em rights (direitos) e entitlements (habilitações?) o que torna a questão mais clara.

 

  
 
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