Um Século de Congelamento

 

Artur Soares Alves

16-Ago-2012

 

 

 

Com frequência é dito em público que Salazar inventou o congelamento das rendas, o que é redondamente errado. No livro O Congelamento das Rendas Urbanas, editado pela CNAPI em 1995, conta-se em pormenor o aparecimento e a manutenção do congelamento das rendas. Dado que este livro não é secreto, embora pareça andar escondido, há muito que se deveria ter deixado de atirar as culpas ao antigo presidente do Conselho.

 

No entanto, o erro é repetido uma vez e outra vez. Compreende-se a malandrice. Contra os admiradores de Salazar usa-se implicitamente o argumento de que se Salazar o fez é porque está bem feito. Para os outros diz-se que a culpa não é nossa mas é sim mais um elemento da pesada herança.

 

Para ajudar a desfazer esta história falsa publica-se o quadro abaixo. Com esta publicação, o leitor que queira pôr um ignorante na ordem só tem que dar-lhe o link desta mesma página:

http://proprietarios.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=609&Itemid=734.

 

Todavia — cuidado! — porque em PortugalEles têm o curso completo. Quando admitem os cem anos acrescentam que se a coisa é tão antiga, então já não pode resolver-se.

 

Em todo o caso, a nova lei foi publicada anteontem. Para os proprietários, sobretudo para os que faleceram na pobreza, é seguramente pouco. Todavia, o quadro seguinte mostra como ela representa uma mudança num país que se habituou a cardanhar as poupanças de quem trabalha, poupa e cumpre as leis.

 

Não esqueçamos também que o congelamento sem inflação não serve para nada, isto é, não serve para tirar a Pedro e dar a Paulo. O congelamento forma uma tenaz em conjunto com a inflação. E desta inflação houve em abundância entre 1910 e os dias de hoje.

 

 

Ano

Acontecimento

1910

Implantação da República. Publicação do Decreto de 12-Nov-1910 congelando das rendas por um ano. Centenário que passou em 2010 e que foi modestamente comemorado.

1914

Decreto 1079 de 23-Nov. A pretexto da Grande Guerra decreta-se o congelamento total das rendas: uma casa fica com a renda congelada ao valor na data do decreto, mesmo que venha a estar devoluta. Obrigação penal de arrendar casas devolutas pela renda em vigor à data do decreto.

1917

Lei 828 de 28-Set. Faz pequenas correcções ao decreto de 1914, reforçando os aspectos repressivos daquele.

1918

Decreto 4499 de 29-Jun. Governava Sidónio Pais. Prolonga o período do congelamento. Revogado em 17-Abr-1919.

1918

Decreto 4952 de 13-Nov. Reforça os aspetos repressivos do anterior.

1919

Decreto 5411 de 17-Abr. Reúne toda a legislação sobre o arrendamento. Faz uma alteração importante porque a legislação congeladora anterior tomava como pretexto a Grande Guerra que entretanto acabara em 11-Nov-1918. Assim, essa legislação era considerada de exceção. Agora a legislação considera o congelamento como uma situação normal, mantendo o congelamento para sempre. E definindo punições para quem recuse arrendar.

1920

Lei 1020 de 18-Ago. O Estado legisla em proveito próprio: “Não poderá ter seguimento qualquer acção de despejo de prédios urbanos de que seja inquilino o Estado”.

1923

Decreto 9118 de 10-Set. Manda corrigir as rendas congeladas multiplicando-as por coeficientes muito inferiores ao aumento do custo de vida — e dos salários — registado após 1914.

1928

Decreto 15.289 de 30-Mar. Pretende descongelar algumas rendas embora para valores inferiores ao aumento dos preços. Anulado pelo decreto 15.315 publicado 5 dias depois.

1943

Decreto 32.638 de 22-Jan. Regressa ao congelamento para os prédios que entretanto tinham sido arrendados.

1948

Lei 2030 de 22-Jun. A grande lei sobre o inquilinato publicada pelo Estado Novo. Essencialmente alinha o valor das rendas pelo valor matricial dos prédios, ou o rendimento ilíquido que é atribuível a estes, referente a 1937. As rendas habitacionais poderiam voltar a atualizar-se por reavaliação fiscal, que fica interdita em Lisboa e Porto. Esta situação vai permanecer até 1985. Portanto, Salazar corrigiu alguma coisa mas manteve em vigor o congelamento, embora o tenha atenuado; e os efeitos fossem também atenuados pela estabilidade da moeda.

1969

Estudo do conselheiro Gonçalves Pereira, sob ordem do Ministro da Justiça, concluindo que as rendas estavam entre um quinto e um quarto do valor que teriam se acompanhassem a desvalorização da moeda.

1974

Decreto-lei 217/74 de 27-Mai. Regressa o congelamento das rendas no espírito de 1914, por 30 dias…

Decreto-lei 445/74 de 12-Set. Fixa em definitivo o congelamento juntamente com a obrigação de arrendar.

1975

Decreto-lei 198-A/75. Entre outras coisas legaliza as ocupações selvagens de prédios devolutos. É este o diploma que ficou conhecido como lei Portas.

1982

Lei 2/82 de 15-Jan. Estabelece um regime especial de proteção para as “repúblicas” de Coimbra.

 

É certo que houve alguma legislação que foi anunciada como pretendendo descongelar as rendas. Além daquela que se cita acima, de 1923 e 1948, temos:

 

Decreto-lei 148/81, possibilitando rendas quase livres e atualizáveis, mas somente para os novos contratos. Casa roubada, trancas na porta…

Lei 46/85, que quebrou o tabu do congelamento em Lisboa e Porto. No entanto previa aumentos das rendas incompatíveis com a inflação decorrida.

Decreto-lei 321-B/90, chamado RAU, e que no campo habitacional vem aperfeiçoar a lei 46/85. Pelo ano em que foi publicado — quando quantidades brutais de dinheiro entravam em Portugal após adesão à Comunidade Europeia — e pela ausência de reformas reais, merece o nome de decreto das oportunidades perdidas.

Decreto-lei 257/95 de 30-Set. Permite finalmente arrendamentos não-habitacionais com termo certo.

Lei 6/2006 de 23-Fev, conhecido por NRAU, contém também modificações no Código Civil respeitantes aos contratos de arrendamento. Define um processo de descongelamento das rendas que não é realista, nem aplicável. Foi mais um flop.

Lei 31/2012 de 14-Ago. Publicada anteontem e da qual ainda é cedo para comentar.

 

 

Inflação

 

Como se disse o congelamento é parte de uma tenaz, a outra parte é a inflação. Só assim são cumpridos o objetivo de tirar a riqueza a quem a poupou para a dar a quem é amigo do sistema político. A inflação também é chamada aumento do custo de vida — aumento para alguns, boa vida para outros. Significa que, por exemplo, o que se comprava com 100 escudos em 1910 necessitava de 2.219 escudos para se comprar em 1930.

 

Quem sofre com a inflação são os chamados titulares de rendimentos fixos. Assim, os salários e as pensões foram subindo, tal como os lucros comerciais mas as rendas permaneceram fixas porque o Estado se recusava a reconhecer a desvalorização da moeda, ao mesmo tempo que anualmente é publicada a tabela de desvalorização da moeda.

 

Damos a seguir alguns exemplos tirados da Portaria 282/2011 de 21 de Outubro. Como em cada ano o Ministro das Finanças publicou os coeficientes de desvalorização da moeda. Estes coeficientes são baseados no índice de preços no consumidor, que mede a inflação, mas habitualmente reconhece uma desvalorização inferior à indicada pelo IPC. Em todo o caso, vejamos alguns exemplos:

 

 

Desvalorização

Entre 1911 e 1930

22,19

Entre 1937 e 1948

2,14

Entre 1974 e 1985

9,28

Entre 1985 e 2006

3,30

Entre 1911 e 2011

3.870,90

 

O que estes números mostram é a inanidade das anunciadas correções das rendas congeladas.

 

FIM

  

 

  
 
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